terça-feira, 28 de junho de 2011

Mas quando eu estiver morto...


- Enterre seus mortos!
Alice virou o rosto assustada.
- Vá até o quintal e faça antes que eles venham lhe assombrar!
Ouviu aquilo de cabeça baixa. Deu as costas e foi em direção ao lugar mais baixo do quintal. Começou a cavar com as mãos, mas em pouco tempo suas unhas estavam cheias de areia e seus dedos inúteis. Levantou e foi até a edícula. Saiu de lá com uma pá nas mãos e prometeu para si mesma só parar quando tivesse cavado o mais fundo que pudesse.
Em pouco tempo havia aberto uma cova com mais de dez palmos.
Com as costas da pá, bateu forte nos cantos do buraco para se certificar que as paredes não iriam ceder. Apoiou as mãos no alto do buraco e com um pulo voltou ao solo. Já estava se sentindo sem ar dentro daquele lugar.
Com a cabeça um pouco mais erguida foi até a sala onde havia deixado todos os corpos. Eles estavam no mesmo lugar. Um ao lado do outro. Imóveis. Nem pareciam os mesmos. Começou pelo que julgou dar mais trabalho. Estendeu seus braços e o arrastou até o buraco que havia cavado. Com um movimento rápido jogou o corpo lá dentro. Pegou o lírio que havia separado e atirou em cima do corpo.
- Flores tem significado.
Falou como se eles a pudessem ouvir.
- Vocês vão entender. Não agora, mas eu sei que vão.
Voltou correndo para a casa grande e saiu arrastando o segundo corpo.
- Ainda tenho um longo trabalho a fazer.
Quando o último cadáver foi posto dentro da vala, atirou o último lírio e começou a jogar terra fofa em cima de todos eles. Lançou os primeiros punhados de terra com a mão. Depois segurou a pá com os dedos trêmulos e jogou mais terra, até o buraco estar completamente cheio. O sol já se mostrava no horizonte e ela estava tão cansada que nem percebeu que um novo dia já havia sido anunciado.
Devagar arrastou seu corpo que agora parecia ter o dobro do peso até o quarto. Tirou os sapatos e o sobretudo que vestia. Arrancou as calças e arremessou o mais longe que pôde. Se jogou sobre a cama e adormeceu.
Horas depois foi acordada por uma voz firme que vinha de longe.
- Levante e acabe o trabalho! Os mortos são seus! Não deixe isso para que eu tenha que resolver!
Alice colocou os pés para fora da cama e os encostou no chão gelado. Fazia frio.
Chegou até a pia e levantou os olhos na altura do espelho. As olheiras estampadas em seu rosto denunciavam a noite difícil que havia tido. Não gostou do que viu. Mesmo assim não podia voltar para a cama. Não com o trabalho inacabado. Abriu a torneira. Deixou a água correr um pouco. Juntou as duas mãos e as levou cheias em direção ao rosto. Molhou as faces e piscou algumas vezes os olhos. Voltou a olhar para o espelho. O reflexo era o mesmo. Abriu as portas do box e estendeu as mãos até o registro. Como se não quisesse fazer aquilo, levantou os braços e puxou a blusa fina que cobria seu tórax. Puxou as laterais da calcinha e a deixou cair no chão. Esticou o pé embaixo do chuveiro para sentir a temperatura da água. Estava boa o bastante para um banho rápido. Pegou o sabonete e começou a ensaboar todo o corpo em movimentos rápidos. Tentando tirar a terra de sua pele. Esfregava as unhas para que fosse mais rápido. Em alguns minutos tinha tirado de si todos os vestígios daquela noite. Com a mão mais firme, girou a válvula e fechou o chuveiro. Algumas gotas ainda caíram. Puxou a toalha e a envolveu em seu corpo. Estava arrepiada. O inverno estava mais intenso este ano. Com as pernas pingando e os pés molhados foi até a cama e com um impulso subiu. Ficou de pé como de costume, para se secar. A roupa estava escolhida sobre o seu travesseiro. A calcinha preta foi a primeira peça que colocou em seu corpo ainda úmido. Puxou uma das laterais finas e soltou, como se quisesse escutar o barulho do elástico em sua pele. Em seguida pegou a meia-calça e se equilibrando a desenrolou pelas pernas, tomando cuidado para que ela não enganchasse em suas unhas. Após tê-la vestido desceu da cama lentamente calçando os sapatos que estavam no chão esperando por ela. Olhou para o espelho que estava às suas costas e parou por um segundo, lembrando de tudo o que havia feito. Um lampejo lhe veio à mente. Os lírios caindo sobre os corpos. Tomou o vestido cor de luto em suas mãos e esticou os braços para que ele entrasse com mais facilidade. Foi puxando centímetro a centímetro para ele se ajeitar em seu corpo. Aproximou-se então do espelho e arregalou os olhos. Tirou a toalha dos cabelos e os balançou. Não havia tempo para escová-los. Amassou os cachos e jogou os cabelos de lado. Abriu a bolsa e tirou a maquiagem para cobrir sua pele branca. Passou um pouco de corretivo embaixo dos olhos e rímel em seus longos cílios. Abriu o batom rosado e passou pelos lábios um pouco ressecados pelo frio da noite. Tirou os óculos escuros de dentro de uma caixa que ficava sobre a cômoda e o colocou no rosto. Estava pronta para terminar tudo aquilo. Passou pela cozinha e mais uma vez a voz se fez presente.
- Eles já estão esperando. Ainda bem que não vão nem sentir o quanto você demorou. Pensei que ia escorrer ralo abaixo como a água, pelo tempo que demorou!
Alice não disse nem uma palavra. Pegou a chave que estava na mesa e saiu batendo a porta.
Enquanto dirigia não ligou o som. Preferiu ouvir o som do silêncio. Estacionou o carro na lateral e desceu. Entrou. Ajoelhou-se por um minuto fazendo o sinal da cruz. Não era religiosa. Nem mesmo sabia no que acreditava. Mas acreditava que rituais tinham que ser cumpridos. Esperou a missa chegar ao fim e foi em direção do altar.
- Alice, vai ficar tudo bem. Cada um está no lugar que deveria estar. Cada um deles vai seguir o seu caminho. E você fez tudo o que estava ao seu alcance. Não deve se culpar. Isso logo vai passar. Tudo vai ser esquecido.
- Não sei se fiz certo. Enterrei eles com minhas próprias mãos. Pra sempre.
- Tudo o que fez teve um motivo. Cada um dos que enterrou mereceu. E os lírios? Achou?
- Sim. Um para cada, como o Senhor me aconselhou. - Disse Alice.
- Eles eram brancos?
- Como prometi.
- Então não precisa se preocupar. Tudo vai voltar a ser como era antes.
Alice abaixou-se novamente, inclinando a cabeça. Com a mão direita, o padre fez o sinal da cruz sobre a testa de Alice, acompanhado de um leve movimento de sim com a cabeça, apertando simultaneamente os olhos. Alice agradeceu com a cabeça e com um tímido sorriso. Virou as costas e abaixou os óculos sobre os olhos. Uma lágrima tocou o solo sagrado. E ela desceu em direção a um novo começo.