segunda-feira, 18 de julho de 2011

Olho por olho


Quando Alice entrou na sala a Sombra tocava lentamente os dedos em cada boneco exposto na estante, como se pudesse com aquele movimento extrair deles alguma resposta.
- Tire as mãos daí! - Pensa que eu não a estou vendo?
Alice gritou com a Sombra para que ela a obedecesse prontamente. Com o susto a Sombra deixou um dos pequenos bonecos cair no chão. Com a queda ele se partiu, separando a cabeça do resto do corpo.
- Viu o que fez? Sabia que isso iria acontecer! Sempre que eu entro aqui você está mexendo neles. Eu finjo que não vejo e você se esconde em algum canto!
A Sombra já havia se metido em alguma brecha escura desaparecendo. Deixando para Alice limpar toda aquela bagunça.
- Veja se pode! Sei que está Aí! Por isso ouça com muita atenção!
Alice estava brava e enquanto falava abaixou-se para recolher os cacos que estavam no chão. Tentava montar, como se fosse um quebra-cabeça, aquela figura que agora estava decaptada.
- Não quero mais ver você mexendo nas minhas coisas! Se quiser me visitar tudo bem, mas de hoje em diante vai ter que entrar e pedir permissão. Pare de fazer tudo escondido. Se quiser me perguntar algo então faça!
A Sombra foi saindo lentamente de onde havia se escondido e aparecendo novamente para Alice.
- Não sei o motivo de você fazer isso! Fale algo pelo menos! Fica deixando recados e coisas quebradas pelo chão. Você acha que isso me agrada? É claro que não! Fora que é menos um para a minha coleção! Olha, você me deixou realmente brava!
Alice dirigiu-se até um armário branco de contornos azuis, abriu a porta e tirou de uma das prateleiras um pote de cola. Passou pela porcelana aquela gosma branca e tentou juntar o corpo com a cabeça.
- Me diga! Gostaria se fosse com você? Que ficassem remexendo nas suas coisas? Pelo menos me diga o que quer, horas bolas!
A Sombra agora olhava assustada para Alice, que segurava a cabeça do pequeno boneco para tentar fixá-la ao seu corpo.
- E por que sempre eles? O que você tem a favor deles? Nem sei o motivo de eu estar perguntando, como sempre você não vai responder!
Alice levantou o olhar procurando a sombra, que agora estava grudada em uma parede com as mãos espalmadas.
- Não é o primeiro que deixa cair, mas espero que seja o último. Eu demoro para os conquistar e quando acontece, você chega como quem não quer nada e os tira de mim! Entenda que aí é o lugar deles. Não servem para estar em outro lugar. Não passam de enfeites. Não adicionam nada a vida de ninguém. Por isso os trago para cá. Em outro lugar poderiam estar fazendo um grande estrago. Você não entende!
Realmente a Sombra não entendia. E fazia cada vez mais uma cara de interrogação.
- Você sabe bem o que eles fizeram comigo. Não é nenhuma maldade o que faço com eles. Só dou a eles o que merecem. Aliás, isso é pouco.
Alice soltou a cabeça do boneco que já havia se colado ao corpo. Assoprou, como se aquilo fosse fazer alguma diferença, e o pôs na prateleira acima da que havia tirado o pote de cola.
- Menos um para a minha coleção. Dese jeito eles nunca vão pagar pelo que fizeram e você é o culpado!
A Sombra saiu de perto da parede e foi em direção às costas de Alice.
- Pare de agir como se eu fosse má. Ninguém aprende nada sem uma lição! E eu estou tentando dar uma neles. Sei que vai demorar, mas um dia vai acontecer e eu quero todos, uns ao lado dos outros.
A Sombra chegou bem perto do ouvido de Alice e sussurrou algo. Alice sentiu e virou-se rapidamente. A Sombra voltou para cima da estante.
- Isso é um sim ou um não?
A Sombra não se mexeu.
- Não é problema meu se deixaram eu capturar a alma deles. Eles foram os errados. Eu os prendi aí dentro porque foram desleais. Merecem ficar confinados. Dentro de um lugar apertado, sem liberdade. Somente assistindo. Não participando de nada. Não podendo opinar. Sem o controle de suas vidas. Durante muito tempo fizeram isso com alguém. Nada mais justo do que passarem pelo que fizeram outras pessoas passarem.
A Sombra abaixou os olhos e fez que sim com a cabeça. Alice não podia ver. Mas ela estava concordando com tudo.
- Acha que eu queria que fosse assim? Mas alguém tem que fazer esse trabalho. Não gosto de dedicar todos os dias da minha vida a pessoas que não dão sequer valor àquelas que dizem amar!
A Sombra sabia bem do que Alice estava falando. E agora ia em direção a janela.
- Um dia vou me livrar desse serviço. E isso não está muito longe de acontecer. Um dia desses recebi uma carta dizendo que faltavam poucos para completar a minha coleção. Assim que ela estiver completa eu estarei livre. Mas eu só vou conseguir fazer isso se você parara de libertar eles. Será que entende?
A Sombra subiu no parapeito da janela, olhou para Alice, deu um impulso para cima e sumiu na noite.
As cortinas estufaram com o vento, e Alice virou-se para a janela, sentindo um frio na espinha.
Virou para os bonecos e olhando fixamente para um disse:
- Vocês podem me olhar, mas não irão me tocar nunca!
Soltou a toalha que ainda estava envolta em seu corpo deixando-a cair no chão de mármore. Deitou nua sobre a cama, de frente para a estante. Em um ângulo em que todos os bonecos a pudessem ver, e adormeceu.

Um comentário:

  1. “ Vou para o Nunca, para nunca mais, assim como você quis e deixo aqui, sobre seu ventre a rosa negra, que cresce somente a beira do rio de lágrimas da minha Terra. Nela corre o sangue de minha maldição, pois espetei meu dedo em seus espinhos. Se um dia mudar de idéia e desejar meu retorno, arranque uma de suas pétalas e a mastigue. É a única forma de me fazer voltar e eu atenderei seu chamado. Porém, o veneno da rosa fará você sentir a dor de mil punhais em seu peito, pois esta, é a dor da minha partida.”

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